Processo nº 1065/2006 - 2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional,
I Relatório
1. Nos presentes autos, o Tribunal Cível de Lisboa proferiu a seguinte decisão: De acordo com o artigo 66° do Código de Processo Civil, e 18° nº 1 da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais são da competência dos Tribunais Judiciais somente as matérias que a lei não atribua a outra ordem jurisdicional. No caso concreto, pretende o requerente que o tribunal emita mandado, que lhe permita proceder à remoção de animais em número superior ao legal, conforme artigo 3° n.° 6 do Decreto-lei n.° 314/2003, de 17-12. A salvaguarda do ambiente e salubridade nos agregados populacionais são uma atribuição dos municípios (artigo 14° n.° 1 alínea h) da Lei n° 159/99, de 14 de Setembro), realizada em prol do interesse público.
Logo, os actos a realizar pelo ente público competente serão necessariamente actos de gestão pública, por se compreenderem no exercício de um poder público, integrando a realização de uma função pública da pessoa colectiva, independentemente de envolverem ou não, eles mesmos, o exercício de meios de coerção. Assim, decorrendo da lei que o acto administrativo de que se pretende a sindicância é de gestão pública, por se compreender no exercício de atribuições e competências deferidas a uma entidade pública, deveria, à partida, a apreciação do pedido formulado caber aos Tribunais Administrativos, conforme artigos 4° n° 1 alínea b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
No mesmo sentido, vide os Ac. RC de 20-01-87, in Boletim do Ministério da Justiça nº 363, p. 609, Ac. RL 6‑10‑87, in Boletim do Ministério do Justiça n° 370, p. 602, Ac. RL 8-04-92, Boletim do Ministério da Justiça nº 416, p. 693 e Ac. da RE de 7 de Junho de 1990, Colectânea de Jurisprudência, Tomo III, p. 280. Como se escreveu no Ac. do Tribunal Constitucional nº 158/95, A decisão camarária é caracterizável com acto administrativo na medida em que há aí um comando de um órgão autárquico, prosseguindo e realizando interesses públicos relativamente à remoção de um animal de raça canina, com efeitos jurídicos sobre uma situação individual e num caso concreto.
Ainda, no Ac. do Tribunal Constitucional n.° 579/95, de 20-11, escreve‑se que: problema pressuposto pela decisão de inconstitucionalidade é assim, o da qualificação do acto camarário (a decisão de remoção dos animais) como exercício de função administrativa integrante do poder autárquico. A atribuição de competência aos tribunais de comarca para o recurso da decisão camarária apenas será duvidosa, no plano constitucional, na medida em que o problema anterior for resolvido no sentido da qualificação como acto administrativo da decisão camarária (...) ao prever que “as razões de salubridade ou tranquilidade da vizinhança” (...) são fundamento da decisão camarária de remoção dos animais em causa, integra uma tal decisão no âmbito (...) das atribuições cometidas às câmaras (...) A tranquilidade da vizinhança ou a qualidade de vida em que pode interferir a instalação de animais em habitações sem as devidas condições para que não resultem incómodos e perigos para a saúde não é um mero problema de conflito de direitos entre sujeitos privados, mas corresponde antes a uma ordenação geral da vida dos agregados populacionais, a um interesse público que compete às autarquias preservar e promover. Só para uma concepção liberal historicamente datada, segundo a qual os poderes públicos não englobam entre os seus objectivos a promoção de bens colectivos de interesse geral, nomeadamente a qualidade de vida dos habitantes das povoações, é que situações como as referidas (...) poderão ser identificadas como meros conflitos de interesses ou direitos entre sujeitos privados.
Porém, na ordem jurídica do Estado de direito democrático e social, que sedimentou em direitos sociais que desenvolvem os direitos fundamentais individuais, a relevância autónoma dos conflitos de interesses conexionados com a vizinhança, o sossego e a tranquilidade de vida, coloca-se no plano de uma ordenação geral da vida colectiva destinada a assegurar um nível aceitável de qualidade de vida no espaço físico e no ambiente psicológico de cada indivíduo. É esse mínimo de ordenação que justifica medidas condicionantes do espaço de cada cidadão, em ordem a prevenir riscos para os outros.
Uma tal necessidade de defender e preservar a qualidade de vida e o ambiente dos cidadãos nas relações de vizinhança justifica a subtracção de certas situações a uma pura ponderação de interesses sob a égide do direito privado, cujas coordenadas são a igualdade e a liberdade em contraposição à autoridade e à competência características do direito público (cf. Menezes Cordeiro, Teoria Geral do Direito Civil, 1988, p. 11 e ss.), e a sua inserção no direito público. O facto de as relações de vizinhança serem conexionadas com interesses públicos não implica, aliás, que apenas esteja em causa o interesse público. A doutrina do Direito Administrativo reconhece hoje que a prossecuçâo do interesse público não é o único critério de acção administrativa. Também os direitos subjectivos e os interesses legítimos dos particulares constituem limite e critério de acção administrativa (cf. Freitas do Amoral, Direito Administrativo, II, 1988, p. 80 e ss.). Estamos, assim, perante o exercício de poderes administrativos de competência das autarquias locais, sendo a decisão de remoção de canídeos acto administrativo, à luz de uma definição analítica, segundo a qual o acto administrativo é um acto jurídico unilateral, orgânica e materialmente administrativo e que versa a produção de efeitos jurídicos sobre uma situação individual num caso concreto (cf. Freitas do Amaral, ob. cit., III, 1989, p. 66 e ss.).
Posto isto, verifica-se porém, que o Decreto-lei n.° 314/2003, de 17 de Dezembro, artigo 3º n.° 6, dispõe expressamente no sentido de serem competentes os tribunais judiciais para verificação da legalidade do acto administrativo, pressuposto da emissão do mandado requerido. De notar que a emissão de tal mandado não é, nem pode ser, acto meramente formal, antes requer a verificação dos pressupostos legais que ditam tal prerrogativa camarária. De notar ainda, que a forma processual utilizada – a providência cautelar – preconiza que os tribunais judiciais sejam competentes para a apreciação da correspondente acção declarativa – artigo 383° n.° 1 do Código de Processo Civil – e não se vislumbra qual essa possa ser, senão o recurso contencioso da própria decisão camarária – que declara, definitivamente, a legalidade do acto – sendo este, claramente, de jurisdição administrativa.
Esta disposição legal integra-se em diploma exarado no exercício do poder legislativo cometido ao Governo pelo artigo 198° n.° 1 da Constituição da República Portuguesa. Ora, tal norma vem alterar, claramente, a definição da competência dos tribunais judiciais, tal como ela resulta do ordenamento jurídico geral, ao atribuir aos tribunais judiciais competência afecta à prática de actos administrativos por um órgão da administração local. É esta matéria de reserva relativa da Assembleia da República – artigo 165° n.° 1 alínea p) da Constituição da República Portuguesa. Pelo exposto, e como já decidiu o Tribunal Constitucional, com força obrigatória geral, sobre norma idêntica vertida no Decreto-lei n.° 317/85, de 2 de Agosto, a disposição ao abrigo da qual foi instaurada a presente providência enferma de inconstitucionalidade orgânica, por exarada por órgão incompetente para legislar sobre o matéria em apreço.
Deverá, pois, tal inconstitucionalidade ser declarada, no âmbito da fiscalização sucessiva cometida aos tribunais judiciais, e desaplicada a norma correspondente – artigo 204° da Constituição da República Portuguesa. Desconsiderada tal norma, conclui-se, do mais que se deixou exarado, que se encontra expressamente excluída da competência dos Tribunais Judiciais a apreciação do pedido deduzido nos presentes autos, por ser para tal absolutamente incompetente em razão da matéria, em conformidade com o disposto nos artigos 101°, 102° n.° 1, 105° n.° 1, 494°, proémio e alínea a) e 495° todos do Código de Processo Civil. Por todo o exposto, decido: – Não aplicar, por ferido de inconstitucionalidade orgânica, o artigo 3° n.° 6 do Decreto-lei n.º 314/2003, de 17 de Dezembro; – Declarar incompetente, em razão da matéria, o presente tribunal para conhecer da providência requerida. Foi interposto recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da norma desaplicada.
Junto do Tribunal Constitucional, o Ministério Público produziu alegações que concluiu do seguinte modo:
1º As normas incluídas no Decreto‑Lei n° 314/03 de 17 de Dezembro – aprovando o programa nacional de luta e vigilância contra a raiva animal e regulando a posse e detenção de animais a ela susceptíveis – configuram-se como tendo natureza administrativa, já que visam a realização prioritária do interesse público na área da saúde e qualidade da vida das populações – tendo a natureza de acto administrativo a “notificação”, feita pela autarquia, nos termos do n° 5 do artigo 3º, para o particular pôr termo às situações ilegais, removendo os animais detidos em excesso ou sem condições de salubridade.
2° A intervenção jurisdicional prevista no n° 6 daquele artigo 3° é expressão do princípio constitucional da “reserva do juiz”, visando possibilitar a execução do acto administrativo nos casos em que ela envolve entrada coerciva no domicílio do requerido – configurando-se, deste modo, como acessória ou instrumental da relação jurídica administrativa em causa.
3° Sendo o Decreto‑Lei n° 314/03 editado a descoberto de credencial parlamentar, não pode aquela norma inovar no sistema de repartição de competências entre os tribunais judiciais e administrativos, decorrente do ETAF. 4º Cabe presentemente no âmbito da jurisdição administrativa a tutela de direitos fundamentais do particular, no âmbito de uma relação jurídico‑administrativa, bem como a fiscalização da legalidade de quaisquer actos jurídicos emanados pela Administração no exercício da função administrativa (artigo 4º, n° 1, alíneas a) e b) do ETAF) – cabendo processualmente no âmbito dos processos cautelares, regulados no CPTA, a obtenção de autorização jurisdicional para executar o referido acto administrativo. 5º Nestes termos, deve a norma desaplicada na decisão recorrida ser interpretada em conformidade com a Constituição, de modo a caber à jurisdição administrativa a competência para a emissão do “mandado judicial” previsto no n° 6 do artigo 3° do Decreto Lei n° 314/03.
Por seu turno, os recorridos contra‑alegaram, concluindo o seguinte:
1° – A norma contida no art° 3° nº 6 do D/L 314/2003 de 17 de Dezembro enferma de inconstitucionalidade orgânica, em virtude de a redacção do respectivo artigo violar e desrespeitar o disposto no art° 165º n° 1 alínea p) da CRP.
2° – A decisão para a remoção dos animais tendo em conta a saúde pública é um acto administrativo, logo, o Tribunal onde foi proposta a providência cautelar é incompetente em razão da matéria.
3º – É por isso passível de inconstitucionalidade a norma constante no D/L 314/2003 de 17 de Dezembro por se encontrar excluída dos Tribunais Judiciais, visto que estamos perante um acto administrativo. Cumpre apreciar e decidir.
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional,
I Relatório
1. Nos presentes autos, o Tribunal Cível de Lisboa proferiu a seguinte decisão: De acordo com o artigo 66° do Código de Processo Civil, e 18° nº 1 da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais são da competência dos Tribunais Judiciais somente as matérias que a lei não atribua a outra ordem jurisdicional. No caso concreto, pretende o requerente que o tribunal emita mandado, que lhe permita proceder à remoção de animais em número superior ao legal, conforme artigo 3° n.° 6 do Decreto-lei n.° 314/2003, de 17-12. A salvaguarda do ambiente e salubridade nos agregados populacionais são uma atribuição dos municípios (artigo 14° n.° 1 alínea h) da Lei n° 159/99, de 14 de Setembro), realizada em prol do interesse público.
Logo, os actos a realizar pelo ente público competente serão necessariamente actos de gestão pública, por se compreenderem no exercício de um poder público, integrando a realização de uma função pública da pessoa colectiva, independentemente de envolverem ou não, eles mesmos, o exercício de meios de coerção. Assim, decorrendo da lei que o acto administrativo de que se pretende a sindicância é de gestão pública, por se compreender no exercício de atribuições e competências deferidas a uma entidade pública, deveria, à partida, a apreciação do pedido formulado caber aos Tribunais Administrativos, conforme artigos 4° n° 1 alínea b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
No mesmo sentido, vide os Ac. RC de 20-01-87, in Boletim do Ministério da Justiça nº 363, p. 609, Ac. RL 6‑10‑87, in Boletim do Ministério do Justiça n° 370, p. 602, Ac. RL 8-04-92, Boletim do Ministério da Justiça nº 416, p. 693 e Ac. da RE de 7 de Junho de 1990, Colectânea de Jurisprudência, Tomo III, p. 280. Como se escreveu no Ac. do Tribunal Constitucional nº 158/95, A decisão camarária é caracterizável com acto administrativo na medida em que há aí um comando de um órgão autárquico, prosseguindo e realizando interesses públicos relativamente à remoção de um animal de raça canina, com efeitos jurídicos sobre uma situação individual e num caso concreto.
Ainda, no Ac. do Tribunal Constitucional n.° 579/95, de 20-11, escreve‑se que: problema pressuposto pela decisão de inconstitucionalidade é assim, o da qualificação do acto camarário (a decisão de remoção dos animais) como exercício de função administrativa integrante do poder autárquico. A atribuição de competência aos tribunais de comarca para o recurso da decisão camarária apenas será duvidosa, no plano constitucional, na medida em que o problema anterior for resolvido no sentido da qualificação como acto administrativo da decisão camarária (...) ao prever que “as razões de salubridade ou tranquilidade da vizinhança” (...) são fundamento da decisão camarária de remoção dos animais em causa, integra uma tal decisão no âmbito (...) das atribuições cometidas às câmaras (...) A tranquilidade da vizinhança ou a qualidade de vida em que pode interferir a instalação de animais em habitações sem as devidas condições para que não resultem incómodos e perigos para a saúde não é um mero problema de conflito de direitos entre sujeitos privados, mas corresponde antes a uma ordenação geral da vida dos agregados populacionais, a um interesse público que compete às autarquias preservar e promover. Só para uma concepção liberal historicamente datada, segundo a qual os poderes públicos não englobam entre os seus objectivos a promoção de bens colectivos de interesse geral, nomeadamente a qualidade de vida dos habitantes das povoações, é que situações como as referidas (...) poderão ser identificadas como meros conflitos de interesses ou direitos entre sujeitos privados.
Porém, na ordem jurídica do Estado de direito democrático e social, que sedimentou em direitos sociais que desenvolvem os direitos fundamentais individuais, a relevância autónoma dos conflitos de interesses conexionados com a vizinhança, o sossego e a tranquilidade de vida, coloca-se no plano de uma ordenação geral da vida colectiva destinada a assegurar um nível aceitável de qualidade de vida no espaço físico e no ambiente psicológico de cada indivíduo. É esse mínimo de ordenação que justifica medidas condicionantes do espaço de cada cidadão, em ordem a prevenir riscos para os outros.
Uma tal necessidade de defender e preservar a qualidade de vida e o ambiente dos cidadãos nas relações de vizinhança justifica a subtracção de certas situações a uma pura ponderação de interesses sob a égide do direito privado, cujas coordenadas são a igualdade e a liberdade em contraposição à autoridade e à competência características do direito público (cf. Menezes Cordeiro, Teoria Geral do Direito Civil, 1988, p. 11 e ss.), e a sua inserção no direito público. O facto de as relações de vizinhança serem conexionadas com interesses públicos não implica, aliás, que apenas esteja em causa o interesse público. A doutrina do Direito Administrativo reconhece hoje que a prossecuçâo do interesse público não é o único critério de acção administrativa. Também os direitos subjectivos e os interesses legítimos dos particulares constituem limite e critério de acção administrativa (cf. Freitas do Amoral, Direito Administrativo, II, 1988, p. 80 e ss.). Estamos, assim, perante o exercício de poderes administrativos de competência das autarquias locais, sendo a decisão de remoção de canídeos acto administrativo, à luz de uma definição analítica, segundo a qual o acto administrativo é um acto jurídico unilateral, orgânica e materialmente administrativo e que versa a produção de efeitos jurídicos sobre uma situação individual num caso concreto (cf. Freitas do Amaral, ob. cit., III, 1989, p. 66 e ss.).
Posto isto, verifica-se porém, que o Decreto-lei n.° 314/2003, de 17 de Dezembro, artigo 3º n.° 6, dispõe expressamente no sentido de serem competentes os tribunais judiciais para verificação da legalidade do acto administrativo, pressuposto da emissão do mandado requerido. De notar que a emissão de tal mandado não é, nem pode ser, acto meramente formal, antes requer a verificação dos pressupostos legais que ditam tal prerrogativa camarária. De notar ainda, que a forma processual utilizada – a providência cautelar – preconiza que os tribunais judiciais sejam competentes para a apreciação da correspondente acção declarativa – artigo 383° n.° 1 do Código de Processo Civil – e não se vislumbra qual essa possa ser, senão o recurso contencioso da própria decisão camarária – que declara, definitivamente, a legalidade do acto – sendo este, claramente, de jurisdição administrativa.
Esta disposição legal integra-se em diploma exarado no exercício do poder legislativo cometido ao Governo pelo artigo 198° n.° 1 da Constituição da República Portuguesa. Ora, tal norma vem alterar, claramente, a definição da competência dos tribunais judiciais, tal como ela resulta do ordenamento jurídico geral, ao atribuir aos tribunais judiciais competência afecta à prática de actos administrativos por um órgão da administração local. É esta matéria de reserva relativa da Assembleia da República – artigo 165° n.° 1 alínea p) da Constituição da República Portuguesa. Pelo exposto, e como já decidiu o Tribunal Constitucional, com força obrigatória geral, sobre norma idêntica vertida no Decreto-lei n.° 317/85, de 2 de Agosto, a disposição ao abrigo da qual foi instaurada a presente providência enferma de inconstitucionalidade orgânica, por exarada por órgão incompetente para legislar sobre o matéria em apreço.
Deverá, pois, tal inconstitucionalidade ser declarada, no âmbito da fiscalização sucessiva cometida aos tribunais judiciais, e desaplicada a norma correspondente – artigo 204° da Constituição da República Portuguesa. Desconsiderada tal norma, conclui-se, do mais que se deixou exarado, que se encontra expressamente excluída da competência dos Tribunais Judiciais a apreciação do pedido deduzido nos presentes autos, por ser para tal absolutamente incompetente em razão da matéria, em conformidade com o disposto nos artigos 101°, 102° n.° 1, 105° n.° 1, 494°, proémio e alínea a) e 495° todos do Código de Processo Civil. Por todo o exposto, decido: – Não aplicar, por ferido de inconstitucionalidade orgânica, o artigo 3° n.° 6 do Decreto-lei n.º 314/2003, de 17 de Dezembro; – Declarar incompetente, em razão da matéria, o presente tribunal para conhecer da providência requerida. Foi interposto recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da norma desaplicada.
Junto do Tribunal Constitucional, o Ministério Público produziu alegações que concluiu do seguinte modo:
1º As normas incluídas no Decreto‑Lei n° 314/03 de 17 de Dezembro – aprovando o programa nacional de luta e vigilância contra a raiva animal e regulando a posse e detenção de animais a ela susceptíveis – configuram-se como tendo natureza administrativa, já que visam a realização prioritária do interesse público na área da saúde e qualidade da vida das populações – tendo a natureza de acto administrativo a “notificação”, feita pela autarquia, nos termos do n° 5 do artigo 3º, para o particular pôr termo às situações ilegais, removendo os animais detidos em excesso ou sem condições de salubridade.
2° A intervenção jurisdicional prevista no n° 6 daquele artigo 3° é expressão do princípio constitucional da “reserva do juiz”, visando possibilitar a execução do acto administrativo nos casos em que ela envolve entrada coerciva no domicílio do requerido – configurando-se, deste modo, como acessória ou instrumental da relação jurídica administrativa em causa.
3° Sendo o Decreto‑Lei n° 314/03 editado a descoberto de credencial parlamentar, não pode aquela norma inovar no sistema de repartição de competências entre os tribunais judiciais e administrativos, decorrente do ETAF. 4º Cabe presentemente no âmbito da jurisdição administrativa a tutela de direitos fundamentais do particular, no âmbito de uma relação jurídico‑administrativa, bem como a fiscalização da legalidade de quaisquer actos jurídicos emanados pela Administração no exercício da função administrativa (artigo 4º, n° 1, alíneas a) e b) do ETAF) – cabendo processualmente no âmbito dos processos cautelares, regulados no CPTA, a obtenção de autorização jurisdicional para executar o referido acto administrativo. 5º Nestes termos, deve a norma desaplicada na decisão recorrida ser interpretada em conformidade com a Constituição, de modo a caber à jurisdição administrativa a competência para a emissão do “mandado judicial” previsto no n° 6 do artigo 3° do Decreto Lei n° 314/03.
Por seu turno, os recorridos contra‑alegaram, concluindo o seguinte:
1° – A norma contida no art° 3° nº 6 do D/L 314/2003 de 17 de Dezembro enferma de inconstitucionalidade orgânica, em virtude de a redacção do respectivo artigo violar e desrespeitar o disposto no art° 165º n° 1 alínea p) da CRP.
2° – A decisão para a remoção dos animais tendo em conta a saúde pública é um acto administrativo, logo, o Tribunal onde foi proposta a providência cautelar é incompetente em razão da matéria.
3º – É por isso passível de inconstitucionalidade a norma constante no D/L 314/2003 de 17 de Dezembro por se encontrar excluída dos Tribunais Judiciais, visto que estamos perante um acto administrativo. Cumpre apreciar e decidir.
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