2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
I. Relatório
1.Em 3 de Setembro de 2001, a A. apresentou, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, requerimento de intimação do Primeiro-Ministro a facultar-lhe certidões referentes à totalidade do contrato outorgado entre o Estado Português e as empresas do grupo B., incluindo os respectivos Anexos e estudos técnicos, de modo a permitir à requerente avaliar a incidência ambiental e concorrencial do projecto de implantação de uma unidade industrial em Esposende.
Em 15 de Março de 2002, o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa indeferiu o pedido de intimação formulado por aquela organização ambientalista, a quem reconheceu, embora, legitimidade para recorrer a tal meio processual acessório (apenas no que concerne às suas preocupações ambientais). Na fundamentação da sentença discutiu-se a “constitucionalidade da reserva decorrente do segredo industrial, pois que a lei constitucional não o refere explicitamente” (no n.º 2 do artigo 268.º), referindo-se expressamente as normas do n.º 1 do artigo 62.º do Código de Procedimento Administrativo, do n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 65/93, de 26 de Agosto, e do n.º 1 do artigo 13.º Decreto-Lei n.º 321/95, de 28 de Novembro, concluindo-se que “os valores subjacentes à consagração dos segredos comercial e industrial têm protecção constitucional” pelo que tais normas não seriam inconstitucionais.
A requerente interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Central Administrativo, adoptando a tese, considerada e afastada na sentença, da inconstitucionalidade dos artigos 62.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo e 10.º da Lei n.º 65/93, de 26 de Agosto, quando interpretados no sentido de imporem reservas ao direito de informação, para além do previsto no artigo 286.º, n.º 2, da Constituição.
Por acórdão de 23 de Maio de 2002, a 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo negou provimento ao recurso. Considerando estar em causa a colisão entre o direito à informação e os direitos à propriedade e iniciativa privada, com o inerente segredo industrial e comercial, concluiu o acórdão, por maioria, pela legitimidade da opção feita pelo legislador ordinário no artigo 10.º da Lei n.º 65/93 (na redacção da Lei n.º 8/95, de 29 de Março) e no artigo 62º, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento Administrativo, «permitindo a recusa de acesso a documentos “cuja comunicação ponha em causa segredos industriais”». Mais concluiu que “[s]ó quando não existe lei é legítima a ponderação dos valores em conflito pelo intérprete”, sendo que, no caso, a legislação a aplicar seria o “art.º 10.º da Lei n.º 65/93, de 26 de Agosto”, e que também dos termos contratuais – a cláusula 17.ª do contrato de investimento estrangeiro, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros 34-B/2001, de 30 de Março de 2001 – resultava “a vinculação do Estado Português ao dever de sigilo”.
2.Recorreu então a referida organização ambientalista para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação das normas constantes “dos art.ºs 10.º da Lei n.º 65/93, de 26 de Agosto, n.º 1 do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 321/95, de 28 de Novembro, 10.º da Lei n.º 8/95, de 29 de Março, tal como foram interpretadas e aplicadas pelo Douto Acórdão recorrido, isto é, no [sentido] de que fez prevalecer normas protectoras de segredo industrial, de propriedade privada, de liberdade de iniciativa e da propriedade privada dos meios de produção em confronto com o direito à informação para protecção do ambiente, por parte de uma associação ambientalista; assim como no sentido de que não haverá, em caso de colisão, uma prevalência do direito ao ambiente em confronto com direitos de carácter patrimonial; e, ainda, no sentido de que o Estado Português, por causa de tal protocolo, estaria vinculado contratualmente a uma obrigação de segredo, pelo que se violaria o princípio da legalidade.”
Admitido o recurso, a recorrente encerrou assim as suas alegações:
«A - Nestes autos está em causa a problemática da protecção do ambiente e,
B - reflexamente a defesa da vida, integridade física e moral das pessoas, incluindo a segurança,
C - nomeadamente na sua vertente da prevenção perante eventuais violações;
D - o que implica o direito à informação, como instrumento fundamental para o exercício daqueles direitos,
E – pois a todo o direito compete uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo.
F – A vinculação das entidades públicas diz respeito ao Estado, tanto enquanto legislador, como no que se refere à administração,
G – Como vincula entidades privadas.
H – Estamos perante normas em que está em causa a força jurídica dos direitos, liberdades garantias,
I – que são directamente aplicáveis, mesmo na ausência de lei, contra a lei e em vez da lei.
J – As eventuais restrições a direitos deste género terão de ter em conta princípios constitucionais diversos, nomeadamente o da proporcionalidade e a exigência de respeito do seu núcleo essencial.
K – A defesa do ambiente opera-se fundamentalmente por acção preventiva (princípios da prevenção e da precaução), na medida em que os danos ambientais são frequentemente de natureza irremediável e grave;
L - os diferentes procedimentos existentes são o meios formais fundamentais para exercer o direito à informação, e para a consequente tutela dos mesmos direitos e interesses.
M – Só em casos limitados, de informações e/ou documentos “classificados” é que poderá haver restrições ao direito à informação dos particulares: quando estão em jogo poderosos interesses públicos,
N – ou quando se pretenda, em alguns casos, proteger a intimidade e privacidade das pessoas.
O – O nosso quadro legal constitucional configura o direito ao “arquivo aberto”, em nome de uma chamada “democracia administrativa” e de um “direito de saber”.
P – Não há segredos industriais a defender no caso dos autos,
Q – Já que o regime da propriedade industrial não os contempla; de facto,
R – estando nós no domínio da liberdade de iniciativa privada e da concorrência, assim como da tipicidade dos direitos de propriedade industrial, estes são defendidos através das normas do registo e da punição da concorrência desleal,
S – sendo certo que, com o registo, deixa de haver segredo, passando a existir publicidade registral.
T – De resto, nunca o Recorrido informou que tipo de segredo industrial estaria a ser protegido: quando muito estaremos no segredo do…segredo!
U – O douto Acórdão em apreço veio lesar ilicitamente interesses relacionados com o ambiente, a vida e segurança das pessoas e o correspondente direito à informação.
V – Mesmo em caso de eventual colisão de interesses e/ou direitos, os de carácter não-patrimonial prevalecem sobre os de índole patrimonial, na sequência de entendimento (quase) unânime da Jurisprudência.
X – O direito ao ambiente é protegido constitucionalmente e insere-se nos direitos de personalidade.
Y – Com a recusa radical de prestar à Recorrente todas e quaisquer informações, o Recorrido e o Douto Acórdão em apreço estiveram a violar, pelo menos, o núcleo fundamental do DIREITO À INFORMAÇÃO em matéria de ambiente.
Z – Foram violadas as disposições dos art.ºs 9.º, 17.º, 18.º, 20.º, 24.º a 26.º, 35.º, 52.º, 66.º, 81.º, 90.º e 268.º da Const. Política, muito especialmente se verificando a inconstitucionalidade dos art.ºs 10.º da Lei n.º 65/93, de 26 de Agosto, n.º 1 do [artigo 13.º do] D.L. n.º 321/95, de 28 de Novembro, 10.º da Lei n.º 8/95, de 29 de Março, tal como foram interpretadas e aplicadas pelo Douto Acórdão recorrido, isto é, no sentido de fazer prevalecer normas protectoras de “segredo industrial”, de propriedade privada, de liberdade de iniciativa e da propriedade privada, dos meios de produção, em confronto com o direito à informação para a protecção do ambiente por parte de uma associação ambientalista; assim como no sentido de que não haverá, em caso de colisão uma prevalência do direito ao ambiente em confronto com direitos de carácter patrimonial; e, ainda, no sentido de que o Estado Português, por causa de tal protocolo, estaria vinculado a uma obrigação de segredo, pelo que se violaria o princípio da legalidade.
Tais normas, na dimensão interpretativa que lhes foi conferida pelo Douto Acórdão recorrido, violam os princípios e normas constitucionais do direito à vida (art.º 24.º), à integridade moral e física das pessoas, incluindo a segurança (art.º 25.º), ao ambiente e qualidade de vida (art.º 66.º), nomeadamente a faculdade de prevenção de tais violações (art.ºs 266.º e 268.º), traduzindo-se tal dimensão interpretativa na efectiva denegação de justiça.»
Por seu turno, o Primeiro Ministro concluiu assim as suas alegações:
«I. Apesar das flutuações reconhecíveis nas alegações da recorrente, parece seguro que o objecto do presente recurso só poderá ser a questão da constitucionalidade do artigo 10.º da Lei n.º 65/93, de 26 de Agosto, e do n.º 1 do artigo 13º do Decreto-Lei n.º 321/95, de 28 de Novembro, por confronto com o n.º 2 do artigo 268.º da Constituição. Na verdade, das diversas disposições legais indicadas nas alegações, apenas essas foram aplicadas no acórdão recorrido.
II. A disposição do art.º 10.º da Lei n.º 65/93, de 26 de Agosto, tem vindo reiteradamente a ser julgada não inconstitucional, por aplicação do raciocínio dispositivo expresso no acórdão n.º 254/99 do Tribunal Constitucional, tirado em Plenário. A mesma doutrina aplica-se ao n.º 1 do art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 321/95, de 28 de Novembro.
III. Constata-se ainda que o acórdão recorrido procedeu a uma valoração circunstanciada dos bens constitucionalmente protegidos eventualmente conflituantes no caso concreto, não se justificando qualquer censura.
IV. Em consequência, resulta incontornável a carência de razão da recorrente.»
Cumpre agora apreciar e decidir.
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